- O que é estar irritada?
- Sinto que estou numa estrada lamacenta e uso sandálias. Não consigo ver bem o chão que piso e sempre que coloco o pé seguinte está uma poça. Caio num buraco (que não vi). Já tenho as pernas a enterrar-se e quero sair e não consigo. Grito e a voz não sai e tento gritar cada vez mais forte e forte, mas não sai qualquer som, o corpo está a enterrar-se completamente. Tento lutar para sair e não consigo. E quanto mais tento mais me enterro. Já não tenho forças.
- Não faças força.
- Enterro-me cada vez mais e mais. A lama já está a chegar à boca.
- Continua.
- Entra lama pelo nariz e estou completamente enterrada e entro no vazio e vai crescendo, crescendo. Sou mais leve. Flutuo. Estou sem estar.
- Deixa-te flutuar.
- Deixo. De qualquer forma não poderia fazer nada para o evitar.
- Não se trata de que possas ou não evitá-lo. Trata-se de que respeites o teu estado pessoal. Trata-se de não te opores à tua realidade de hoje. Trata-se de não interromper um processo em curso. Trata-se de deixar sair essa irritação que, se está presente, será melhor que se manifeste e se esgote para poderes depois passar ao teu momento seguinte.
- Sim... mas não é bonito de se ver.
- Não é bonito para quem?
- Para mim. Sinto-me feia e reles. Má.
- Os adjectivos que usas são os de uma mãe ou pai a repreender a menina que se portou mal, tendo em conta as normas sociais. Uma certa irritabilidade é fundamental para a nossa sobrevivência. Há problemas reais dos quais não podemos fugir e para o quais a raiva pode ser uma resposta saudável e natural. Não podes reprimir a menina que és. Antes pelo contrário deves ouvi-la com atenção. Em caso de dúvida é ela que te orienta porque não perdeu ainda aquilo que é a base da sobrevivência: o instinto.
- Faz sentido. Faz todo o sentido.
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